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Pelo Natal de 2016: escrita, uma ideia obsessiva e o Natal
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Cada vez escrevo menos. Ou melhor, cada vez escrevo menos coisas que antes gostava de escrever. Escrevo o que tenho de escrever para cumprir os requisitos académicos. Mas não tenho escrito nada pelo prazer de escrever, ou exercitado aquele tipo de escrita que tem como fim maior o seu próprio exercício. Reli o que escrevi pelo Natal do ano passado, e constato que me sinto de uma maneira inteiramente diferente em relação a esse exercício. Escrever não é mais uma coisa que me apeteça. A ideia de o fazer cansa-me. Não que eu tenha alguma vez escrito muito ou regularmente; mas porque escrever é um exercício que me exige muito: atenção, intencionalidade, tempo, esforço, concentração. Escrever nunca me foi natural; pelo contrário, foi sempre uma actividade transpirada. No entanto, como todas as coisas no mundo físico, a complexão (ou compleição) actual é susceptível de mudança, lenta ou rápida.
Nunca soube escrever recreativamente de modo programático. Não faço um plano, não sigo um guião. A escrita de que gosto verdadeiramente de executar de modo livre é a que pode, em potência, ir para todos os lados. É como se, escrevendo, contemplasse um derrame controlado da consciência ou me deixasse levar pelo trilho que parte de cada instância consciente. Por isso não me perturba que estas linhas que começaram num lamento pela perda do gosto pelo exercício da escrita acabem num texto sobre o Natal. Ainda que tratar de assuntos sistematicamente não seja o meu forte, acredito que tudo na nossa vida se liga como num todo. Não há parte de nós que não se ligue a outra parte de nós. Ao mesmo tempo, nem tudo o que se pode trazer a uma conversa tem a ver com aquilo sobre o que se está a conversar. Num diálogo dizer “tudo tem a ver com tudo” é um mecanismo medíocre de evasão perante um desconforto ou uma ignorância.
Desde 2012 que alimento a ideia obsessiva de que o Natal não é nada sem a Paixão e a Páscoa; ou, dito de outra maneira, que não haveria o Natal sem a Paixão e a Páscoa. Estes eventos precedem o Natal, dão-lhe conteúdo e significado. Aparentemente, a cronologia que usamos para nos referirmos aos acontecimentos nem sempre no-los apresenta na ordem correcta. É certo que para alguém morrer e ressuscitar precisa primeiro nascer. Mas se Jesus Cristo não tivesse morrido e ressuscitado de facto, o seu nascimento não seria celebrado pela cristandade, até porque nem haveria cristandade. É a essa celebração que chamamos Natal, não ao nascimento de Cristo propriamente. Esta ideia simples é uma pequenina luz persistente que não me deixa escurecer por dentro. A fé auxilia-se de luzinhas assim, precisa delas. S. Paulo tinha várias. Sem ideias apaixonadas esfuma-se – que o leitor entenda, quer seja religioso, quer não. Tudo o que escrevi sobre o Natal emana desta única ideia que penso de várias maneiras ou de que me aproximo de maneiras diferentes pelo Natal de cada ano. Este ano digo-a assim: o Natal sem a Paixão e a Páscoa seria a mais tonta de todas as festas.
Talvez o Natal não ser a mais tonta de todas as festas quer dizer alguma coisa sobre a religião que o celebra.
Feliz Natal a todos.
Annibale Carracci, Pièta, 1599-1600 |
Hostilidades para com a Reforma Luterana no ano de 2016
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1. A história mostra que os irrevogáveis papais são como o irrevogável do Paulo Portas – não são irrevogáveis. Uma condenação por heresia precipitada e, principalmente, instintiva, como a que Leão X consignou a Lutero, nem sempre permanece inalterada. Uma acção precipitada pode ser só uma acção precipitada.
2. Não sou um leitor cego de Lutero; sou um leitor crítico, tal como sou crítico de tudo o que leio.
3. Alguém que tenha lido Lutero e conclui que ele ensinou que as obras não servem para nada não leu Lutero – leu apenas o seu preconceito. A raiva inebria e empece o juízo.
4. É verdade que Lutero ensinou que as obras não são necessárias para a justificação (salvação). Para ele, a justificação acontece completamente pela graça, o que reflecte o ensinamento de Paulo. No entanto, Lutero não ensinou que as obras não são necessárias de todo: elas são ordenadas por Deus e são benéficas para o próximo.
5. O ódio que um certo catolicismo ainda hoje tem por Lutero está desactualizado e é tendencioso. A história ensina que o ódio, quando não é temperado com bom senso, é danoso e inútil. Uma parte assinalável dos autores em que reconheço génio defendem ideias opostas às minhas. Não há mal nenhum em ter-se apreciação e respeito por alguém de quem discordamos.
Leituras de Verão
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Listas de leituras são coisas estéreis em si mesmas. Quanto a mim, têm só estes dois usos: dizem a alguém de que é que alguém outro, em parte, é feito e podem servir como recomendações de leitura para quem as procura. Quem não deseja nenhuma dessas duas coisas considerará, com toda a razão, listas como esta coisas completamente inúteis.
Os títulos que seguem, à excepção dos três últimos, encontram-se por ordem aproximada de leitura. As referências estão propositadamente incompletas porque quis que figurasse a data da primeira publicação. Naturalmente, não coincidem sempre com o ano da edição de que me servi.
GERSÃO, Teolinda, Passagens (2014).
CULLER, Jonathan, Literary Theory: A Very Short Introduction
(1997).
CAMÕES, Luis Vaz de, Os Lusíadas (1572).
PASCOAES, Teixeira de, Santo Agostinho (1944).
NETO, Joel, A
Vida no Campo (2016).
ALMEIDA, Onésimo Teotónio, BRÁS, João Maurício,
Utopias em Dói Menor: Conversas
Transatlânticas com Onésimo (2012).
MELO, João de, Açores: O Segredo das Ilhas (2016).
LAU, Franz, Lutero
(1966).
VILLARES, Artur, Lutero: As Portas do Paraíso (1980).
SANTO AGOSTINHO, Confissões (397-401).
SAINT-EXUPÉRY,
Antoine de, The Little Prince (1943)
O
Santo Evangelho Segundo S. Marcos.
Livro
do Eclesiastes.
Livro
dos Provérbios.
Aqui não se incluem leituras esparsas e parciais porque essas seria
difícil referir.
“Martinho Lutero,” de Orlando Neves (notas de leitura)
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(O que se segue são meras notas de leitura de um livro que encontrei por acaso em Agosto de 2013 num lugar insuspeito. Desde então nunca mais lhe tive acesso.)
Uma pequeníssima biografia por um homem de letras do nosso país. Texto fresco, predominantemente narrativo, com segmentos dialógicos. A narrativa não é linear; antes, há recurso a analepses e a prolepses. É um texto criativo. Neste Martinho Lutero, acompanhamos de forma muito resumida, e não sem intensidade dramática, alguns dos principais acontecimentos da vida do maior reformador da Igreja ocidental.
Orlando Neves apresenta-nos um doutor da Igreja determinado, culto nas artes, na retórica, na filosofia, no direito, na tradição eclesiástica e nas Sagradas Escrituras, o qual, enquanto frade da Ordem de Santo Agostinho, e durante os primeiros anos da Reforma, foi um filho devoto da Igreja Romana, um súbdito leal do papa e um zeloso, severo e escrupuloso cumpridor da regra da Ordem. Lutero, no entanto, desejoso de alcançar a certeza da salvação, não a encontrava em nenhum dos rigores a que se submetia; pelo contrário, vivia sobressaltado com a ideia de um Deus que exige perfeição do ser humano ao mesmo tempo que o condena pela sua inevitável imperfeição. Lutero, no mosteiro, desconhecia a graça de Deus até ter redescoberto o Evangelho que havia sido obscurecido pela Igreja medieval. O movimento da Reforma que se seguiu foi, em primeiro lugar, o conteúdo dessa redescoberta tornado público.
A narrativa de Orlando Neves acompanha alguns dos momentos-chave da vida de Lutero sem de maneira alguma esgotar o movimento que iniciou, ou o período dentro dele sobre que incide, ou mesmo os poucos momentos que apresenta. Este pequeno livro não tem a intenção de oferecer mais do que uma mera introdução criativa a Lutero e à Reforma num país que lhes tem dedicado pouca atenção, e é principalmente aí que reside o seu mérito.
É, quanto a mim, notório que o autor não quis oferecer uma alternativa à biografia portuguesa de Lutero que lhe precedeu Lutero: As Portas do Paraíso, de Artur Villares (1980), que, sendo também um livro pequeno, goza de outros predicados. O livro de Orlando Neves é um livro inteiramente diferente do de Artur Villares, talvez escrito com um tipo de leitor diferente em mente.
Notas da viagem transatlântica n.º 2
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Vi o pôr-do-sol e o nascer-do-sol em menos de quatro horas. Subimos tão a Norte que praticamente beijámos a Gronelândia. A proximidade do pólo fez-me ver, mesmo em plena noite, sempre luz ao lado esquerdo, enquanto a lua dominava a escuridão densa e profunda ao lado direito. Nunca tinha visto do ar a lua à mesma altura da minha cabeça.
Sobre o Atlântico, em viagem da América do Norte para a Europa. Zona indecisa entre o dia 25 e o 26 de Maio de 2016.
Atribuição de nomes próprios a pessoas
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Não creio numa função descritiva ou prescritiva dos nomes próprios. Isto é, não creio que o nome que nos deram descreve como somos, nem creio que nome que nos deram prescreve uma forma de vida. Se o significado do nome de alguém se reflecte na vida da pessoa que o tem, ou se a pessoa que o tem se revê no significado do nome que lhe deram, o fenómeno será caso de coincidência.
Exemplifico. A minha mãe chama-se Berta. Berta quer dizer “Brilhante”. A minha mãe é brilhante literal e metaforicamente. O nome que tem descreve-a bem e ela faz justiça ao nome que lhe deram. No entanto, ninguém lhe deu o nome Berta porque anteviu que ela fosse ser brilhante, nem ela se tornou brilhante porque lhe deram nome Berta.
Um caso paradigmático da não-correspondência
entre o nome de alguém e a pessoa que o tem é o meu próprio caso. Miguel quer
dizer “Quem é como Deus [?]”. Coloco o ponto de interrogação entre parêntesis
rectos porque não é certo que a sílaba Mi- seja sempre um pronome interrogativo
na língua hebraica. Para benefício do argumento, admitamos que neste caso não é,
e o significado do meu nome é uma frase declarativa. No entanto, o nome Miguel não
me foi dado na certeza ou esperança de que eu viesse a ser como Deus, nem eu me
tornei como Deus por causa do nome que me foi dado. Enquanto a minha mãe
reflecte o nome que tem, pois ela é brilhante, ninguém o anteviu, nem ela se
fez de acordo com o nome Berta. Há entre ela e o seu nome uma coincidência
feliz. Já entre mim e o meu nome há apenas uma estética fonética.
Há uns anos atrás ouvi alguém dizer que um
cristão só deve dar nomes cristãos aos seus filhos, de preferência bíblicos –
não qualquer nome cristão ou bíblico, mas um nome que tenha um significado
positivo – porque, disse, as pessoas são o nome que têm. Não podia discordar
mais da pessoa que proferiu essa opinião; não é preciso correr mundo para
conhecer Bertas que não são brilhantes e Miguéis que não são como Deus (eu). Também
não é difícil imaginar que eu pudesse ser melhor do que sou e chamar-me Jacinto
ou pior do que sou e chamar-me Jesus. Por norma, ninguém manda aos pais os
nomes que dão aos filhos, nem quando os pais dão o nome aos filhos adivinham o
que os filhos vão ser.
Por essas razões, e mais algumas, não
creio numa função prescritiva ou descritiva dos nomes próprios. Mas há quem
acredite. E já ouço uma voz retumbante dizer que conhece casos nas Escrituras Sagradas
de personagens cujos nomes prescreviam ou descreviam coisas futuras. Nesses
casos, porém, os nomes foram dados por Deus – não por pais/personagens que esperavam que os
filhos tivessem certos predicados. Para todos nós que não somos personagens
bíblicos, nem que somos alvo ou fruto de uma revelação divina particular, a relação entre
o nome que nos foi dado e a nossa pessoa é apenas nominal; isto é, entre mim e
o significado do meu nome existe apenas o meu nome.
Quando o culto cristão se torna entretenimento
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Ouvi da boca de quem conheceu uma senhora que foi evangélica toda a vida até se converter ao Islão em idade adulta. Razão: muçulmanos num café foram os primeiros a quem ouviu falar seriamente acerca de deus. Razão surpreendente. A cultura do espectáculo, da superficialidade, da sentimentalidade no culto de alguns segmentos do cristianismo faz dele uma coisa bem risível, o que é bastante triste.
A "Adoração dos Magos", de Domingos António de Sequeira, 1828
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Segundo notícia do Público, de 27 de Outubro de 2015, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) lançou uma campanha para adquirir esta pintura por seiscentos mil euros. Domingos António de Sequeira (1768-1837) é considerado um dos melhores pintores portugueses do séc. XIX e, em Roma, a partir de 1926, dedicou-se à pintura de motivos religiosos. Esta obra tardia integra um conjunto de quatro telas sobre Cristo (que inclui Descida da Cruz, Ascensão de Cristo e Juízo Final – esta última inacabada).
Dizer que a luz é a grande protagonista nestas pinturas é apenas repetir o que os críticos já disseram. Mas dizê-lo sobre esta obra em particular é relacioná-la com o tempo litúrgico que interpreta (a Epifania, palavra grega que significa "manifestação"), o qual se dedica a declinar a manifestação da identidade de Cristo, que começa com os magos. De acordo com o evangelista Mateus, Jesus é considerado pelos magos rei dos judeus e adorado como Deus. A luz de uma estrela desempenha um papel fundamental, porque é ela que guia os magos e repousa sobre onde o menino estava. Luz, por natureza, manifesta, revela, é a matéria que torna visíveis todas as coisas passíveis de serem vistas.
Na pintura de Domingos Serqueira, a luz da estrela é interpretada teologicamente. Ao contrário do que acontece com outros corpos celestes, a luz desta estrela funciona como um candeeiro que concentra num feixe a luz que de outro modo se dissiparia em todas as direcções: ela aponta para, e incide sobre, o menino; o espaço envolvente é iluminado por contaminação. Aqui a luz desempenha a mesma função da voz de Deus no monte da transfiguração.
Sob a incidência da luz da estrela estão os magos do oriente. Repare-se, no entanto, que luz não é apenas emitida pela estrela, mas também pelo menino, cujo corpo brilha de si mesmo e, mais do que a estrela, ilumina os magos. O cântico de Simeão, no Evangelho de Lucas, diz o mesmo assim: que Jesus é luz para alumiar os gentios. E o Evangelho de João: que ele é a luz verdadeira que ilumina todos os homens.
A Adoração dos Magos encontra-se em exibição no MNAA. A campanha angariou apoios particulares e de entidades públicas, mas não sei se foi alcançado o montante necessário para a sua aquisição e se já se encontra na exposição permanente. Se não aconteceu ainda, espero que aconteça, porque o lugar de obras de arte de grande qualidade é o museu, para que estejam acessíveis ao grande público.