Salmo 42


Ando a ler o Livro dos Salmos na versão dos Capuchinhos (2008) pela primeira vez. A tradução do versículo 7 (ou 6) faz-me parar:

A minha alma está abatida:
     por isso, penso muito em ti,
     desde as terras do Jordão e dos montes Hermon e Miçar.

Ao contrário de outras versões contemporâneas, a dos Capuchinhos, assim como a tradução que está a ser preparada pela Conferência Episcopal Portuguesa, seguindo a Bíblia hebraica, a Septuaginta e a Vulgata, numera os versículos a partir da rubrica no início do salmo. Isto é particularmente relevante quando se comparam versões. Daí o parêntesis acima.

A versão de João Ferreira de Almeida, na edição Revista e Corrigida, traduz o verbo hebraico zakar pelo verbo "lembrar", mais próximo do original, ao invés de pelo verbo "pensar". Versões de língua inglesa dividem-se em outro ponto: algumas colocam o verbo no presente (NRSV, NASB, ESV), outras, talvez mais próximas do sentido hebraico, no futuro (KJV, NEB, REB), uma vez que zakar está no imperfeito, podendo indiciar um sentido futuro. Na Septuaginta, do mesmo modo, está no futuro. As duas versões portuguesas que menciono optam pelo presente. 

Duas considerações vêm à mente.

Quanto à escolha lexical. A noção de lembrança é uma das noções fundamentais do Antigo Testamento. zakar significa trazer à memória experiências passadas e, muitas vezes, refere-se particularmente à experiência redentora do êxodo. O Salmo 42 refere-se também, por assim dizer, a um exílio, mas de outro tipo: o salmista deseja estar em Jerusalém e no templo, o local do culto e da presença tangível de Deus, mas encontra-se deslocado no norte, na região de Hermon, de onde nasce o Jordão, sem poder vir a Jerusalém. Está por isso fora das fronteiras de Israel, factor que contribui para que alguns conjecturem que esteja de facto exilado. Em qualquer dos casos, tristeza e ansiedade resultam da situação, mas a fé insiste em afirmar-se, porque lembrar Deus, nas escrituras hebraicas, é sobretudo confiar na sua providência e ancorar essa confiança em actos providenciais do passado. Lembrar Deus é confiar nele.

Quanto ao tempo verbal, a opção pelo futuro é correcta, mas  não exclui que a acção se passe no presente. Usamos o futuro também para designar determinações fortes que estamos executar no momento em que as dizemos ou que vamos executar assim que as tivermos dito. No entanto, a opção pelo presente põe em evidência uma característica incontornável da nossa existência: que é quando as coisas nos correm mal que pensamos em Deus. Mais: a tradução dos Capuchinhos em particular destaca que é quando as coisas nos correm mal que pensamos muito nele.

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