Metáforas bélicas


Através da comparação dos textos relevantes de imprensa representativa do Reino Unido, EUA e Alemanha, Sylvia Jaworska, num estudo publicado hoje, 13 de Abril, no Viral Discourse, sugere que a retórica bélica relacionada com o COVID-19 é um fenómeno anglo-americano

O uso de metáforas bélicas tem maior expressão, primeiro, no Reino Unido e, depois, nos EUA. Mas sendo que o estudo analisou apenas a imprensa publicada entre 7 de Janeiro e 31 de Março, a diferença entre os dois países, sugere Jaworska, pode dar-se devido ao atraso relativo do estado de pandemia nos EUA em relação ao Reino Unido, bem como à letargia inicial do governo americano em lidar com a doença.

Já na Alemanha, o uso de metáforas bélicas para falar da pandemia é comparativamente bastante reduzido; palavras dos domínios da ciência e da comunicação são preferidas. Mas aqui  o menor recurso à linguagem bélica pode ser circunstanciada pelo prurido (aliás justificado) causado na imprensa alemã pela associação desse tipo de linguagem com o regime Nazi.

Uma vez que a linguagem influencia acções, comportamentos e atitudes, o estudo termina com a recomendação das opções linguísticas da imprensa alemã, em detrimento das anglo-americanas, para se lidar mais eficazmente com o vírus. A sugestão faz sentido, especialmente porque, como observa a autora, virtudes bélicas são irrelevantes para travar a epidemia, enquanto o esforço médico, científico e comunicativo mostram-se mais adequados.

No entanto, o estudo é em geral pouco convincente, por várias razões. Primeiro, não é claro que na Alemanha se usariam menos metáforas bélicas no contexto da pandemia se a sua história recente tivesse sido outra. Também não é claro que o uso de certas metáforas (neste caso dos domínios da ciência e da comunicação) tenha fomentado melhores práticas na Alemanha ou que, por outro lado, a verificação de certas práticas tenha contribuído para uma melhor escolha vocabular da imprensa. Por último, o título do artigo promete mais do que aquilo que, na verdade, o estudo nos pode dar. A ideia de que o uso de retórica bélica é um fenómeno anglo-americano não fica provada através de um corpora linguístico tão limitado. Ela será fortalecida (ou não) quando se estudar a retórica relacionada com o COVID-19 em imprensas de outros países para além destes três.    

Na imprensa portuguesa, por exemplo, nomes como "combate", "luta" e "linha da frente" e verbos como "combater", "lutar" e "vencer" são comummente usados para descrever situações e actividades enfrentadas ou desenvolvidas pelas autoridades de justiça, forças de segurança e, sim, por pessoas envolvidas na área da saúde. Para já não falar do discurso político e do futebol, ou na celebrada "guerra das audiências" das televisões. Mas, claro, não fiz nem levantamento nem análise estatística de dados.

Em todo o caso, parece-me que a ideia sugerida por Jaworska é um tanto arriscada.

PS: Depois de escrever este post vi que artigos publicados no Internazionale, nos dias 22 e 30 de Março, mostram que o mesmo fenómeno já havia sido notado na Itália, o que não favorece a proposta de Jaworska.

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